Desastres naturais, agravados ou não pela ação do homem, são cada vez mais frequentes no mundo atual.
O Chile é um dos países que conta com um longo histórico de desastres naturais, muitos deles ocorridos nos últimos anos, o que revela quão dramático e desanimador é para sua população. É como se o país vivesse em estado permanente de reconstrução.
Mesmo com sua experiência, resiliência e participação controversa do governo para mitigar os riscos futuros, há de se considerar a enorme importância do envolvimento dos próprios cidadãos atingidos, de arquitetos e ONGs na regeneração pós-desastres.
Quando se tratam de áreas povoadas, a reconstrução das cidades demanda respostas arquitetônicas imediatas, que atendam às necessidades humanas mais urgentes como infraestruturas e abrigos.
A intervenção da arquitetura tem um enorme potencial nos processos de reconstrução não só pela sua função técnica, mas também pelo seu papel social e comunitário, buscando sempre considerar as relações do homem com os espaços, mas muitas vezes, as iniciativas de reconstrução pós-desastres passam longe dessas relações e limitam-se à construção de abrigos.
Para as vítimas, os desastres são emocionalmente destrutivos e perturbadores. Além dos abrigos (temporário e permanente), emprego, assistência na saúde e educação, também existem necessidades sociais, culturais e psicológicas, totalmente ligadas ao território em que vivem.
O território não é apenas o conjunto dos sistemas naturais e de sistemas de coisas superpostas; o território tem que ser entendido como território usado, não o território em si. O território usado é o chão mais a identidade. A identidade é o sentimento de pertencer àquilo que nos pertence. O território é o fundamento do trabalho; o lugar da residência, das trocas materiais e espirituais e do exercício da vida. ― Milton Santos, 1999
Ao discorrer sobre as relações de território, que são mais profundas e vão além do dualismo social-espacial, o geógrafo Milton Santos usa uma célebre frase de Winston Churchill: “Primeiro fazemos nossas casas, depois nossas casas nos fazem” e explica “assim, é o território que ajuda a fabricar a nação, para que a nação depois o afeiçoe."
Em janeiro de 2017, o pequeno povoado de Santa Olga, na região do Maule, no Chile, foi devastado por um dos maiores incêndios florestais já vividos no país, que destruiu a cidade.
O incêndio, que foi intensificado pelos ventos fortes, temperaturas altas e seca prolongada, tomou proporções monumentais e destruiu as casas, as instalações e serviços públicos existentes em apenas um dia, não restando quase nada.
Em meio às cinzas, chamou a atenção as milhares de chapas de cobertura metálica queimadas, único resto visível das mais de mil casas que eram feitas de material leve e que se queimaram com o fogo.
Soube-se que assim que foi feita a retirada dos escombros, algumas pessoas se mobilizaram para realizar uma partida de futebol no campo da cidade, parte que surpreendentemente se manteve intacta e verde depois da queimada.
Esse gesto tão simples mostra a vontade dos afetados de ocupar o seu espaço e de reviver um passado que está em sua memória.
Diante do cenário devastador e da preocupação com a futura reconstrução do povoado, surgem importantes questões: Como reconstruir Santa Olga? O que preservar de sua morfologia? O que manter de seus espaços? O que recordar da tragédia? O que fazer com os escombros?
São questionamentos extremamente pertinentes e que nem sempre são levados em consideração pelo poder público e privado.
Na mesma região do Maule, o terremoto seguido de tsunami em fevereiro de 2010 afetou cerca de novecentas cidades, comunidades rurais e costeiras do Chile, deixando milhares de desabrigados.
O setor rural foi o mais afetado, tanto pela catástrofe como pelo modelo de reconstrução adotado, visto que aos municípios rurais foi adotado o mesmo modelo de reconstrução dos municípios urbanos.
O processo de reconstrução pós-terremoto se desenvolveu no contexto de um sistema socioeconômico neoliberal que rege hoje em dia a sociedade chilena, onde a reconstrução das casas é deixada na mão de entidades privadas e é subsidiada pelo Estado.
As regulamentações mínimas por parte do Estado somadas à má gestão dos governos locais e a falta de coordenação entre município e setor privado, resultaram na construção de habitações que pouco tinham a ver com o tipo de uso e dimensões de antes do terremoto, o que revela o desconhecimento das particularidades dessas comunidades rurais por parte do Estado. Este, também não se preocupou muito com a qualidade das obras, a importância das intervenções, nem com a participação da comunidade.
Na vida rural, a casa é o elemento central. Geralmente maior, é nela que muitas vezes habitam vários familiares, que vivem de atividades agrícolas e domésticas como hortas, criação de aves e outros animais pequenos.
Como a reconstrução das áreas rurais estavam demorando muito mais que nas áreas urbanas, o governo estimulou a autoconstrução assistida e a padronização de soluções habitacionais utilizando instalações pré-fabricadas.
Como resultado, mostraram-se soluções genéricas que não representavam os interesses e necessidades dos habitantes, que acabaram aprofundando a situação de precariedade e vulnerabilidade de muitas famílias.
Podemos ver certa similaridade no uso do território do modo de vida rural com o das sociedades agrícolas pré-industriais e das sociedades primitivas de caçadores e coletores, onde
O território não se definia por um princípio material de apropriação, mas por um princípio cultural de identificação ou, se preferirmos, de pertencimento. Este princípio explica a intensidade da relação ao território. Ele não pode ser percebido apenas como uma posse ou como uma entidade exterior à sociedade que o habita. É uma parcela de identidade, fonte de uma relação de essência afetiva ou mesmo amorosa ao espaço. ― Bonnemaison e Cambrèzy, 1996.
Ainda no Chile, após esse mesmo terremoto, um estudo investigativo feito por Karen Andersen, Laura Rodríguez e Cristóbal Balbontín no acampamento de emergência “El Molino”, povoado de Dichato, na região de Biobío, observou que a própria comunidade se mobilizou para a criação de espaços públicos, que vieram depois a contribuir para a retomada da vida comunitária que tinham antes.
As mulheres do acampamento foram as protagonistas desta iniciativa. Meses depois do desastre, havia um sentimento coletivo de muita tristeza e medo. As pessoas se mantinham presas nos abrigos de emergência, casas de planta retangular, uma ao lado da outra, fechadas com painéis de madeira e sem nenhum jardim.
Não havia espaço público para os moradores se encontrarem. As mulheres então começaram a inserir vegetações, fazer hortas, lavanderias, mesas, coberturas, varandas e acessos, de forma a tentar reproduzir as casas que tinham antes.
Essas primeiras mudanças feitas pelas mulheres para melhorar suas necessidades domésticas e seu cotidiano, contribuíram para que mais pessoas se empenhassem e começassem a criar diversos espaços públicos.
A presença desses espaços reativou não só a vida comunitária, que voltou a ser um lugar de troca, mas também recuperou a vida social das vítimas.
Esse movimento se mostrou necessário e urgente para a recuperação futura e permanente da comunidade e ajudou na reconstrução física, social e psicológica da comunidade, em paralelo com a reconstrução planejada pelo Estado e instituições privadas.
Em todos os casos citados, fica clara a necessidade das políticas públicas serem realizadas considerando a instituição e a comunidade, sempre com grandes esforços e boa coordenação.
Os programas de assistência que incluem a participação ativa das vítimas aumentam a autoconfiança destas, de modo que passam a tomar decisões baseadas em suas reais necessidades. Dessa forma, é desenvolvida uma reconstrução mais justa, que reconhece as especificidades de um povo, que preserva a sua identidade cultural e não deixa que sua memória se apague.
...perder seu território é desaparecer. ― Bonnemaison e Cambrèzy, 1996.
Este ensaio deriva da monografia “Reconstrução Pós-desastre - Memória e Identidade”, produzida como conclusão do curso de pós-graduação Geografia, Cidade e Arquitetura, da Escola da Cidade.
Referências Bibliográficas
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